Música

a escutar:

 

leituras e aproximações

acerca da música composta para lampedusa

de Bruno Béu

_pré-leitura mítica e histórica, princípios e deslocações

Mito estruturante de uma geografia anímica e subtil da vida humana, desde o topói das «ilhas afortunadas», passando pela «ilha de São Brandão» da alta Idade Média, ou pela camoneana «ilha dos amores», a imagem/mito da ilha pode ser objecto de duas largas vias interpretativas; de certo modo, numa relação histórica de consequência entre si: a da demanda do paraíso — espaço distante, seguro e profusamente vário — e a da habitação real, terrestre, do circunscrito. Diga-se, aliás, que, nesta relação de consequência histórica, Portugal ocupou, aliás, com os Achamentos ou Descobertas, essa importante função intermédia ou de relação entre aquelas duas vias: essa de viver, e por si revelar, tanto a demanda que se enraíza na indefinição imaginal do desejo; como o encontro e habitação dos lugares encontrados — e talvez também, tão importante, o esquecimento fundo de um diferencial, sempre afinal impulso dinâmico e transformador, entre o que era indefinida1 e por isso radicalmente procurado, e o que fora encontrado e teve forma. À procura do que não existe — do não-lugar ou u-topia —, que por isso se separa, e é independente — uma ilha —, e vendo do mundo a partir do qual se anseia, sucede, no caminho, primeiro o encontro, depois a habitação desses lugares. Também, tão importante: a visão não de quem vê a ilha de terra ou já do mar, mas de quem vê o mundo a partir da ilha. A insularidade é aí isolamento; o que se encontrou e habitou, a forma em que se cristalizou o desejo animador da procura, é então vivida como aprisionamento.

Na ilha de Lampedusa, a partir da “primavera” de 2011, as várias forças, movimentos e acontecimentos que então se observaram, na conjugação da sua simultaneidade histórica, fizeram da imagem/mito da ilha, das mais fundas aspirações humanas que para ela tendem e a constroem, e do embate real quando já nela se experimentam, um símbolo maior dos nossos tempos, também mais complexo e imbricado, porque cheio de deslocações de sentido: a ilha, mais que demandada, era aí desejada como um ‘ponto de fuga’; mais do que a separação da ilha, nela os refugiados procuravam a sua continuidade política e económica — e, neste caso, só por isso ‘segura‘ — com um continente; o não-lugar da utopia, de mera imagem (por isso não-lugar) fixada pela mais funda aspiração, transformava-se num não-lugar contraditório: simultaneamente espaço físico e terra firme, mas não-lugar político e jurídico. Espaço onde não podiam habitar os que pelo mar fugiam; em condições tão precárias o fazendo que apenas fugiam, não navegavam. Aí a ilha — e com ela toda a Europa com o seu paraíso económico e político relativo — tornava-se uma outra coisa: uma força repulsora, como que dizendo aos que chegavam que o seu ‘lugar‘ era no mar. Não um mar-caminho e mar-viagem; mas um mar-afogamento, um mar-ele-mesmo-só-abismo: um mar-naufrágio. Como que fugindo para o paraíso, os homens, mulheres e crianças eram dele expulsos, não para uma terra real — mas humana —; mas para lugar nenhum, para uma habitação em nenhum espaço, como se para o silêncio e invisibilidade de um Oceano informe: mar do mar.


_função estética e lugar dramático da música

Dada esta referência documental e dramática da peça, em torno da qual se construiria — num processo criativo dirigido, mas colectivo — a sua textura e corpo dramático, e confrontado ainda com uma actualidade pungente, consciente também de todo o lastro histórico e simbólico profuso em torno da imagem da ilha, acabei por eleger, como função maior da presença do som e da música na peça, o ser ela perceptivamente símbolo de uma fluidez própria do aquoso, mas uma fluidez plena de atritos e impedimentos, chegando mesmo a um estatismo formal e desconforto auditivo, de tão intensamente explorada. Assim, estética e simbolicamente, escolhi como núcleo imagético o marítimo, não na sua contemplação distanciada e segura (vide Hans Blumenberg, e a exploração histórico-filosófica da imagem de um naufrágio com espectador, que o observa da terra segura), mas enquanto espaço de catástrofe, simultaneamente tumultuosa e estrídula, mas também lenta e silenciosa, tal a sequência de um afogamento.


_descrição das peças e materiais sonoros 

Entre o material exploratório composto, quatro foram as peças escolhidas e desenvolvidas. Em três destas, a fonte sonora usada é o sistema de colunas da sala; e em todas elas, seja através de uma gramática musical plena de dissonâncias, seja através do recurso a processamentos de distorção sonora, se produzem diversamente texturas auditivas torrenciais de atrito. Distintamente, também porque se contrapõe a um filme amador de veraneio, em que dois dos actores convivem com o sol e mar paradisíaco e balnear de lampedusa, a quarta peça é a única a ouvir-se de uma fonte sonora deliberadamente pouco sofisticada colocada em palco. A primeira peça a ouvir-se consiste num drone sintético, de cerca de um minuto, subitamente introduzido e retirado, então esse silêncio súbito simultâneo à queda, afogamento e morte representada em palco. As duas peças seguintes, afinal a mesma peça ao piano, distinguem-se enquanto na primeira delas se cruza o som acústico do piano com um processamento distorcivo e transformadamente líquido; e na segunda (a única cuja fonte sonora está colocada em palco), o som ouvido é o de um piano limpo, repetitivo, mnésico e aquoso. Na última peça recorre-se a um ensemble de cordas, composto de violinos, violas e violoncelos, numa repetição motívica, ritmicamente irregular, pelos vários instrumentos, enquanto nas vozes dos actores se multiplicam frases negando a identificação com várias nacionalidades, não apenas europeias mas mundiais, numa sobreposição de vozes e música que representa uma negação final de pertença e lugar.

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